terça-feira, 29 de julho de 2008

Grandes são os desertos...

Grandes são os desertos, e tudo é deserto.
Não são algumas toneladas de pedra ou tijolos ao alto
que disfarçam o solo, o tal solo que é tudo.
Grandes são os desertos e as almas desertas e grandes –
Desertas porque não passa por elas senão elas mesmas,
Grandes porque de ali se vê tudo, e tudo morreu.
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Grandes são os desertos, minha alma!
Grandes são os desertos.
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Não tirei bilhete para a vida,
errei a porta do sentimento,
não houve vontade ou ocasião que eu não perdesse.
Hoje não me resta, em véspera de viagem,
com a mala aberta esperando a arrumação adiada,
sentado na cadeira em companhia com as camisas que não cabem,
hoje não me resta (à parte o incómodo de estar assim sentado)
senão saber isto:
Grandes são os desertos, e é tudo deserto.
Grande é a vida, e não vale a pena haver vida.
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Arrumo melhor a mala com os olhos de pensar em arrumar
que com arrumação das mãos factícias (e creio que digo bem).
Acendo o cigarro para adiar a viagem,
para adiar todas as viagens.
para adiar o universo inteiro.
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Volta amanhã, realidade!
Basta por hoje, gentes!
Adia-te, presente absoluto!
Mais vale não ser que ser assim.
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Comprem chocolates à criança a quem sucedi por erro.
E tirem a tabuleta porque amanhã é infinito.
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Mas tenho que arrumar a mala,
tenho por força que arrumar a mala,
a mala.
Não posso levar as camisas na hipótese e a mala na razão.
Sim, toda a vida tenho tido que arrumar a mala.
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Mas também, toda a vida, tenho ficado sentado sobre o canto das camisas empilhadas,
a ruminar, como um boi que não chegou a Ápis, o destino.
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Tenho que arrumar a mala de ser.
Tenho que existir a arrumar malas. A
cinza do cigarro cai sobre a camisa de cima do monte.
Olho para o lado, verifico que estou a dormir.
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Sei só que tenho que arrumar a mala,
e que os desertos são grandes e tudo é deserto,
e qualquer parábola a respeito disto, mas dessa é que já me esqueci.
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Ergo-me de repente todos os Césares.
Vou definitivamente arrumar a mala.
Arre, hei-de arrumá-la e fechá-la;
hei-de vê-la levar de aqui,
hei-de existir independentemente dela.
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Grandes são os desertos e tudo é deserto.
Salvo erro, naturalmente.
Pobre da alma humana com oásis só no deserto ao lado!
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Mais vale arrumar a mala.
Fim.
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04/Outubro/1930
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Álvaro de Campos

quarta-feira, 23 de julho de 2008

Um pouco mais...

Um pouco mais de sol - eu era brasa,
um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
num grande mar enganador de espuma;
e o grande sonho despertado em bruma,
o grande sonho - ó dor! - quase vivido...

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
quase o princípio e o fim - quase a expansão...
Mas na minhalma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!


De tudo houve um começo ... e tudo errou...
- Ai a dor de ser - quase, dor sem fim...
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
asa que se elançou mas não voou...

Momentos de alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...

Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
e mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...

Num ímpeto difuso de quebranto,
tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
das coisas que beijei mas não vivi...

Um pouco mais de sol - e fora brasa,
um pouco mais de azul - e fora além.
Para atingir faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Listas de som avançam para mim a fustigar-me
em luz.
Todo a vibrar, quero fugir... Onde acoitar-me?...

Os braços duma cruz
anseiam-se-me, e eu fujo também ao luar...

Mário de Sá-Carneiro